Você finalmente chegou lá. Depois de semestres devorando livros de anatomia, cinesiologia e teorias de desempenho ocupacional, é hora de colocar o jaleco (ou a roupa confortável para a comunidade) e encarar o mundo real.
O estágio é o momento onde a mágica acontece, mas também onde o choque de realidade bate forte. Não é mais sobre tirar 10 na prova; é sobre pessoas reais, contextos complexos e, muitas vezes, sistemas de saúde sobrecarregados.
Se você está se sentindo perdido ou ansioso, respire. Este guia foi feito para você entender onde está pisando, o que precisa dominar e como não cair em armadilhas comuns.
1. O Cenário: Onde você vai atuar (e a verdade sobre cada um)
A Terapia Ocupacional é vasta. No estágio, você pode cair em contextos muito diferentes do ambiente clínico controlado que você idealizou.
Atenção Primária e UBS: O "Chão de Fábrica" do SUS
Se você for para uma Unidade Básica de Saúde (UBS), esqueça a ideia de apenas reabilitar lesões. Aqui, o foco é promoção de saúde e prevenção.
A Realidade: Você vai lidar com vulnerabilidade social e precisará ser criativo.
O que acontece: Projetos como brinquedotecas em UBS são vitais para garantir o direito ao brincar e acompanhar o desenvolvimento infantil
. Sua Missão: Muitas vezes, seu trabalho será empoderar a família para que eles sejam os promotores de saúde da criança em casa, tirando-os da posição passiva
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Comunidade e Visitas Domiciliares
Sair da clínica e entrar na casa do paciente muda tudo.
A Realidade: Você vai ver a "vida como ela é". A falta de acessibilidade, a dinâmica familiar e a pobreza.
O Desafio: Muitas vezes, você não terá os recursos materiais da faculdade. Terá que improvisar e usar o que o paciente tem em casa
. A Vantagem: Conhecer o território real permite intervenções que jamais funcionariam se fossem prescritas apenas dentro de um consultório
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2. A Relação com o Supervisor: Seu Porto Seguro
Seu supervisor (preceptor) não está lá apenas para te dar nota. Ele é a ponte entre a teoria idealizada e a prática caótica.
A Troca: A sua presença no serviço motiva a equipe e traz atualizações acadêmicas, mas também exige muito do supervisor
. O que esperar: Espere feedback constante. Não tenha medo de ouvir sobre suas falhas; é assim que se cresce. Um bom supervisor vai te acolher, te orientar e te inserir na equipe, mas ele também espera que você demonstre interesse
. Zínculo: É normal sentir uma dependência inicial. Schön descreve isso como uma relação de "confiança e dependência" temporária para que você possa saltar no escuro e aprender a fazer
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3. O Alerta Vermelho: Estágios Não Obrigatórios e a Precarização
Aqui entra o aviso mais importante deste guia. Muitos estudantes buscam estágios extracurriculares (não obrigatórios) pela experiência ou pela necessidade financeira. Cuidado.
Há uma linha tênue entre aprendizado e exploração.
A Armadilha: Infelizmente, muitos locais usam estagiários como mão de obra barata para substituir profissionais formados
. O Sinal de Perigo: Se você está atendendo sozinho, sem supervisão direta, assumindo responsabilidades de um profissional formado e com sobrecarga de trabalho, isso não é estágio. É precarização e, em muitos casos, exercício ilegal da profissão
. Consequência: Essa sobrecarga gera ansiedade, burnout e prejudica seu desempenho na faculdade e sua saúde mental
. Regra de Ouro: Sem supervisão e orientação docente, não há aprendizado real, apenas execução de tarefas
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4. O Kit de Sobrevivência: O que você precisa dominar
Você não precisa saber tudo, mas precisa dominar certas ferramentas para não ficar perdido.
A. Uso Terapêutico de Si
Mais do que qualquer técnica, sua principal ferramenta é você mesmo.
Na Prática: É a capacidade de criar vínculo, empatia e confiança. Nas visitas domiciliares ou na UBS, é essa conexão que garante a adesão ao tratamento
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B. Raciocínio Clínico Contextualizado
Não seja um robô: Não aplique protocolos cegamente. Se você está na casa do paciente, observe o ambiente. Se está na UBS, observe a família. O raciocínio clínico deve considerar a realidade social e cultural, não apenas o diagnóstico biológico
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C. Ética e Postura Profissional
Limites: Reconheça seus limites. Você é estudante. Se não souber, pergunte.
Respeito: Em contextos vulneráveis, o respeito à dinâmica do usuário é lei.
Postura: Lembre-se que você está construindo sua identidade profissional. O modo como você lida com a equipe e com os pacientes agora define quem você será depois de formado
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5. Resumo para Levar no Bolso
Improvisação é competência: Na falta de recursos, a criatividade do TO brilha. Use o cotidiano a seu favor.
O Supervisor é seu aliado: Cole nele. Tire dúvidas. Peça feedback.
Não aceite ser "tapa-buraco": Estágio é para aprender. Se não tem ensino, tem algo errado.
Olhe para a pessoa, não só para a doença: O contexto social define o sucesso da intervenção.
O estágio é um rito de passagem. Vai ter dias que você vai chorar de cansaço, e dias que vai chorar de emoção por uma pequena conquista de um paciente. Aproveite cada minuto, questione, estude e, acima de tudo, seja o Terapia Ocupacional que você gostaria de ter.
Bom estágio!
Referências Bibliográficas Utilizadas:
[1] BARROS, Adriana Reis de; WYSZOMIRSKA, Rozangela Maria de Almeida Fernandes; LUCENA, Kerle Dayana Tavares de. Necessidades pedagógicas sob a ótica da supervisão de estágio curricular em terapia ocupacional. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 46, n. 1, 2022.
[2] BEUTEL, Paula Signe; LOURENÇO, Gerusa Ferreira; MARCOLINO, Taís Quevedo. Ensino e aprendizagem da prática profissional: o caso dos supervisores de estágio do curso de graduação em Terapia Ocupacional da UFSCar. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, v. 28, n. 1, p. 27-35, 2017.
[3] RODRIGUES, Daniela da Silva et al. Estágio não obrigatório em terapia ocupacional: realidade de estudantes de uma universidade pública. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, v. 33, p. e3844, 2025.
[4] ANVERSA, Andreisi Carbone; BORGES, Juliana Maia. Prática de estágio em terapia ocupacional na comunidade. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, v. 24, n. 4, p. 821-826, 2016.
[5] RUAS, Teresa Cristina Brito et al. Experiência de um estágio curricular em Terapia Ocupacional na atenção primária: foco nas necessidades em saúde infantil. ABCS Health Sciences, v. 40, n. 3, 2015.